Três crianças - Huguinho, Zezinho e Luizinho
- disputam entre si uma flauta.
Huguinho se arvora como o único que deve
ficar com o instrumento porque somente ele sabe tocá-lo (questão, pois,
incontroversa, uma vez que todos os outros com isso concordam) e aponta que
seria injustiça tolher o único que seria capaz de encantar os outros com o som
da flauta. Fosse só isso, seria simples.
Entretanto Zezinho também reivindica a
flauta, mas sob o argumento de que, entre todos, é o mais pobre, o único que
não tem e nunca teve nenhum brinquedo para se entreter. A flauta seria sua
única distração (circunstância admitida pelos outros dois que reconhecem que
são mais abastados e que suas casas estão forradas de atrativos). Ouvindo
somente esse relato qualquer um, sensibilizado, se inclinaria a entregar-lhe o
regalo.
Finalmente, Luizinho pondera que a flauta foi
o resultado de seu trabalho, uma vez que, depois de muito pesquisar e de
inúmeras tentativas frustradas até o êxito na produção da peça, durante meses
talhou com esmero aquele instrumento, inconformando-se que só depois de tudo
que passou para construí-la venham querer tomar o fruto de seu esforço. Tomando
contato só com essa versão muito provável que se se decida com ele deixar a
flauta.
O grande problema é que tomou-se contato com
as razões das três crianças na mesma disputa. Assim, nessa aporia, quem deve
ficar com a flauta?
Teóricos do utilitarismo considerariam que
quem sabe tocar é que deveria ficar com a flauta, haja vista que o bem-estar do
menino e de todos que se embeveceriam com a música deve prevalecer. Os
igualitaristas econômicos, empunhando bandeiras para a redução do abismo social
que separa os mais ricos e os mais pobres como em um M.S.F. - Movimento dos Sem
Flauta, entregariam o instrumento a Zezinho. Por fim, os libertários, calcados
na premissa de que não se pode tomar de alguém o fruto de seu trabalho,
decidiriam que o apaniguado deveria ser Luizinho.
A historinha aqui contada, extraída do livro
de Amartya Sen, prêmio Nobel de Economia, titulado A ideia de justiça, além de
apresentar com didatismo pontos fulcrais da filosofia política, ilustra a
transversalidade da verdade. Para muitas coisas da vida, não existe certo ou
errado. Existem pontos de vista. E só.
E se em um experimento sociológico forem
indagados gente de "esquerda" e de "direita" sobre a
criança que deve ficar com a flauta, confirmando o aqui dito e redito inúmeras
vezes, muitos responderão em desacordo com a bandeira que, por conveniência,
empunham, confirmação que, salvo exceções cada vez mais excepcionalíssimas, no
fundo só existe a ideologia do cada um por si.
Fonte: Moginews
Matéria publicada em 19/10/12 Tribuna Livre
Dirceu do Valle, advogado e professor de pós-graduação
da PUC/SP
0 comentários:
Postar um comentário